Sublimação: Resgate e Enunciações
Written by Adonai Estrela Medrado   
Monday, 30 June 2008 21:02

Sobre

Texto apresentado no Curso de Formação do Instituto Brasileiro de Psicanálise Salvador-BA em 29/05/2008.

Introdução

Na física térmica e na química o termo sublimação representa a passagem do estado sólido diretamente para o gasoso ou a purificação de uma substância volátil por meio do calor (HOUAISS, 2008). Em psicanálise, Freud em 1915 define a sublimação como uma das vicissitudes da pulsão. Aparentemente ele trataria mais especificamente sobre este tema em um dos artigos metapsicológicos que foi extraviado (FREUD, 1997), mas em sua obra existem diversas referências à sublimação as quais serão resgatadas através deste trabalho.

Resgate teórico: sublimação nos escritos de Freud

Em diversos escritos Freud define, constrói e exemplifica o conceito de sublimação. A revisão deste material traz uma rica, útil e importante visão sobre o conceito de sublimação. Tendo isto em vista, o objetivo desta seção é fazer um resgate teórico, buscando nas próprias palavras de Freud suas construções a respeito da sublimação seguindo a ordem temporal.1

Resumo2, texto de 1901/1905, afirma a sublimação como fontes da atividade artística, “conforme tal sublimação seja mais ou menos completa, a análise caracterológica de pessoas altamente dotadas, sobretudo as de disposição artística, revela uma mescla, em diferentes proporções, de eficiência, perversão e neurose.”

Três ensaios sobre a teoria da sexualidade3 capítulo A sexualidade infantil, texto de 1905, associa a sublimação às realizações culturais. Assim, através da sublimação “adquirem-se poderosos componentes para todas as realizações culturais.” Situa-se o momento inicial do processo sublimativo no período de latência sexual da infância.

Fantasias histéricas e sua relação com a bissexualidade4, texto de 1908, contextualiza a sublimação em um momento posterior ao processo auto-erótico da masturbação, quando a fantasia passa de consciente para inconsciente. “Se não obtém outro tipo de satisfação sexual, o sujeito permanece abstinente; se não consegue sublimar sua libido — isto é, se não consegue defletir sua excitação sexual para fins mais elevados — estará preenchida a condição para que sua fantasia inconsciente reviva e se desenvolva, começando a atuar, pelo menos no que diz respeito a parte de seu conteúdo, com todo o vigor da sua necessidade de amor, sob a forma de sintoma patológico”.

Moral sexual civilizada e doença nervosa moderna5, texto de 1908, coloca que “a constituição inata de cada indivíduo é que irá decidir primeiramente qual parte do seu instinto sexual será possível sublimar e utilizar”. Aborda-se também a importância das pulsões sexuais e da sublimação para o homem, a primeira coloca “à disposição da atividade civilizada uma extraordinária quantidade de energia, em virtude de uma singular e marcante característica: sua capacidade de deslocar seus objetivos sem restringir consideravelmente a sua intensidade. A essa capacidade de trocar seu objetivo sexual original por outro, não mais sexual, mas psiquicamente relacionado com o primeiro, chama-se capacidade de sublimação.” Completa afirmando que não é possível sublimar toda a pulsão sexual, “para a grande maioria das organizações parece ser indispensável uma certa quantidade de satisfação sexual direta [...]”.

Cinco lições de psicanálise – Quinta Lição6, texto de 1910, afirma que a neurose é um dos caminhos possíveis da luta contra os complexos: o outro é a sublimação. “Conforme as circunstâncias de quantidade e da proporção entre as forças em choque, será o resultado da luta a saúde, a neurose ou a sublimação compensadora”.

Leonardo Da Vinci e uma lembrança de sua infância7, texto de 1910, constrói a hipótese de que Da Vinci “conseguiu sublimar a maior parte da sua libido em sua ânsia pela pesquisa”. Para provar esta hipótese acredita que seria necessário conhecer pormenores sobre o desenvolvimento mental durante os primeiros anos de sua infância.

Notas psicanalíticas sobre um relato autobiográfico de um caso de paranóia (dementia paranoides)8 capítulo III - Sobre o mecanismo da paranóia, tratando da questão da homossexualidade faz relação entre sublimação e a atividade social: “[...] não é irrelevante observar que são precisamente os homossexuais manifestos, e entre eles exatamente aqueles que se colocam contra a tolerância quanto a atos sensuais, que se distinguem por participação particularmente ativa nos interesses gerais da humanidade — interesses que por si mesmo se originaram de uma sublimação de instintos eróticos.”

Recomendações aos médicos que exercem a psicanálise9, texto de 1912, cria relações entre os neurótico e a sublimação “nem todo neurótico possui grande talento para sublimação; pode-se presumir que muitos deles de modo algum teriam caído enfermos se possuíssem a arte de sublimar seus instintos”. Enuncia-se a existência de um limite variável de indivíduo para indivíduo: “muitas pessoas caem enfermas exatamente devido à tentativa de sublimar os seus instintos além do grau permitido por sua organização [...]”.

Tipos de desencadeamento da neurose10, texto de 1912, coloca a sublimação como uma das duas formas de permanecer sadio quando existe uma frustração persistente de satisfação no mundo real. Assim, “[...] renunciar à satisfação libidinal, sublimar a libido represada e voltá-la para a consecução de objetivos que não são mais eróticos e fogem à frustração” seria capaz de manter o indivíduo sadio.

A história do movimento psicanalítico - Fluctuat nec mergitur (no brasão da cidade de Paris)11, texto de 1914, caracteriza e diferencia a psicanálise em relação as propostas de Adler e Jung. Ele afirma que o objetivo da terapia “jamais pode ser realizado desviando-se o paciente [...] [das catexias libidinais] e concitando-o a sublimar, e sim através do exame exaustivo das mesmas que as torne plena e completamente conscientes”.

Sobre o narcisismo: uma introdução12, texto de 1914, traz uma série de conceitos sobre narcisismo e a definição e diferenciação da sublimação com relação à formação de um ideal do ego. A sublimação é definida como “processo que diz respeito à libido objetal e consiste no fato de o instinto se dirigir no sentido de uma finalidade diferente e afastada da finalidade da satisfação sexual; nesse processo, a tônica recai na deflexão da sexualidade”. A diferenciação do processo de sublimação do de idealização se faz na medida em que o primeira relaciona-se ao alvo, à finalidade (Ziel) da pulsão, enquanto o segundo está relacionada ao objeto pulsional (Objekt). Assim, a sublimação altera o caminho conducente à satisfação da pulsão (finalidade última), enquanto a idealização altera a coisa através da qual a pulsão é capaz de se satisfazer.

Observações sobre o amor transferencial (novas recomendações sobre a técnica da psicanálise III)13, texto de 1915, trata do manejo da transferência. Afirma-se que “instigar a paciente a suprimir, renunciar ou sublimar seus instintos, no momento em que ela admitiu sua transferência erótica, seria, não uma maneira analítica de lidar com eles, mas uma maneira insensata”.

Conferência XXII - Algumas idéias sobre desenvolvimento e regressão – Etiologia14, texto de 1916/1917, afirma a capacidade limitada, particular e individual da sublimação: “A plasticidade ou livre mobilidade da libido não se mantém absolutamente preservada em todas as pessoas, e a sublimação jamais tem a capacidade de manejar senão determinada parcela de libido; acresce-se o fato de que muitas pessoas são dotadas apenas de uma escassa capacidade de sublimar”.

Conferência XXVII – Transferência15, texto de 1916/1917, trata da relação transferencial afirmando que “algumas mulheres conseguem sublimar a transferência e moldá-la até que atinja essa espécie de viabilidade; outras hão de expressá-la em sua forma crua, original e, no geral, impossível”.

História de uma neurose infantil16 capítulo VI A neurose obsessiva, texto de 1918, coloca a sublimação como forma de proteção, citando a sublimação religiosa e militar. Fala-se também de sublimar uma atitude masoquista. No capitulo IX – Recapitulação e problemas complementa a análise da sublimação religiosa afirmando que no caso clínico estudado “a religião atingiu todos os objetivos pelos quais é incluída na educação do indivíduo. Restringiu as impulsões sexuais do menino, propiciando-lhes uma sublimação e um ancoradouro seguro; diminuiu a importância das suas elações [sic?] familiares e, desse modo, protegeu-o da ameaça do isolamento, dando-lhe acesso à grande comunidade humana. A criança indomada e cheia de medos tornou-se sociável, bem comportada e sensível à educação”. O capítulo V - As relações dependentes do ego apresenta o conceito de desfusão pulsional: “após a sublimação, o componente erótico não mais tem o poder de unir a totalidade da agressividade que com ele se achava combinada, e esta é liberada sob a forma de uma inclinação à agressão e à destruição.”.

Dois verbetes de enciclopédia17 capítulo (B) A teoria da libido, coloca a sublimação como a vicissitude pulsional mais importante. Nela “tanto o objeto quanto o objetivo são modificados; assim, o que originalmente era um instinto sexual encontra satisfação em alguma realização que não é mais sexual, mas de uma valoração social ou ética superior”

O ego e o id18 capítulo III - O ego e o superego (ideal do ego), texto de 1923, levanta a hipótese de um caminho universal da sublimação: toda sublimação se efetuaria “através da mediação do ego, que começa por transformar a libido objetal sexual em narcísica e, depois, talvez, passa a fornecer-lhe outro objetivo”.

O mal-estar na civilização19, texto de 1930, coloca-se a sublimação como forma de lidar com o sofrimento afirmando que a tarefa de afastar o sofrimento “consiste em reorientar os objetivos instintivos de maneira que eludam a frustração do mundo externo. Para isso, ela [a tarefa] conta com a assistência da sublimação dos instintos.”

Em Novas conferências introdutórias sobre psicanálise – Conferência XXXIII – Feminilidade20, texto de 1933, são discutidos os conceitos de masculino, feminino, ativo, passivo e bissexualidade. Em sua época, Freud afirma que as mulheres são “mais débeis em seus interesses sociais e possuidoras de menor capacidade de sublimar os instintos, do que os homens”. Esta hipótese é justificada considerando os fatores diferentes a que são expostos, na época em questão, homens e mulheres no desenvolvimento dos seus papeis sociais.

A técnica da psicanálise21, texto de 1937/1939, tratando dos fatores que trabalham em favor da análise e dos que trabalham contra ao processo analítico coloca-se que “a capacidade do paciente de sublimar seus instintos desempenha um grande papel”.

Enunciados, caracterização e conceituação esquemática da sublimação

A partir da análise dos escritos pode-se construir o seguinte esquema a respeito da sublimação:

  • A sublimação é uma das vicissitudes das pulsões.

    • Implicação: A satisfação da pulsão sexual é imperativa e pode dar-se através de diversos mecanismos, inclusive a sublimação.

    • Implicação: Como vicissitude a sublimação é uma modalidade de defesa contra a pulsão.

  • A sublimação é um dos caminhos possíveis para a satisfação.

    • Implicação: A sublimação está relacionada com o modo de se atingir a finalidade última da pulsão (Ziel).

  • Existe uma constituição inata que define qual parte da pulsão poderá ser sublimada.

    • Implicação: Existe uma parcela da pulsão que não é susceptível à sublimação.

    • Implicação: A tentativa de sublimar as pulsões além das possibilidades individuais leva à enfermidade.

    • Hipótese: Alguns indivíduos tem pouquíssima capacidade de sublimação.

    • Hipótese: A sublimação poderia evitar a neurose.

  • A sublimação não é o objetivo da análise.

    • Implicação: No processo analítico não se deve instigar a sublimação da transferência erótica.

  • A sublimação pode perpassar diversos caminhos.

    • Exemplo: Sublimação para pesquisa, artes, religião e militar.

Considerações Finais

O processo da sublimação está presente na psicanálise como tema recorrente. Sua importância reside principalmente no fato de ser considerada por Freud como uma das vicissitudes das pulsões sexuais juntamente com a reversão ao oposto, retorno em direção ao eu e repressão.

No exercício da sua tarefa, o psicanalista deve aprender a trabalhar com ela uma vez que influencia a análise podendo se mostrar também no processo transferencial.

Notas de Rodapé

1Todos as citações desta seção referenciam (FREUD, 1997).

2Volume VI.

3Volume VII. Título em Alemão: Drei abhandlungen zur sexual theorie.

4Volume IX. Título em Alemão: Hysterische phantasien und ihre beziehung zur bisexualität.

5Volume IX. Título em Alemão: Die ‘kulturelle’ sexualmoral und die moderne nervosität.

6Volume XI. Título em Alemão Über psychoanalyse.

7Volume XI. Título em Alemão: Eine kindheitserinnerung des Leonardo Da Vinci.

8Volume XII. Título em Alemão: Psychoanalytische bemerkungen über einen autobiographisch beschriebenen fall vonparanoia.

9Volume XII. Título em Alemão: Ratschläge für den arzt bei der psychoanalytischen behandlung.

10Volume XII. Título em Alemão: Über neurotische erkrankungstypen.

11Volume XIV. Título em Alemão: Zur geschichte der psychoanalytuschen bewegung.

12Volume XIV. Título em Alemão: Zur einführung des narizssmus.

13Volume XII. Título em Alemão: Bemerkungen über die übertragungsliebe.

14Volume XVI.

15Volume XVI.

16Volume XVII. Título em Alemão: Aus der geschichte einer infantilen neurose.

17Volume XVIII. Título em Alemão: Psychoanalyse und libidotheorie.

18Volumx XIX. Título em Alemão: Das ich und das es.

19Volume XXI. Título em Alemão: Das unbehagen in der kultur.

20Volume XXII. Título em Alemão: Neue folge der vorlesungen zur einführung in die psychoanalyse.

21Volume XXII.

Referências

FREUD, Sigmund. Edição Eletrônica de Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1997.

HOUAISS. Dicionário Houaiss da lingua portuguesa. 2008. Disponível em: <http://houaiss.uol.com.br>. Acesso: 25/05/2008.

Last Updated on Friday, 05 March 2010 09:25