Poesia de Camões
Written by Adonai Estrela Medrado   
Monday, 24 May 2010 15:30

Sobre

Este material é adaptação de trabalho apresentado em março/2010 como requisito para aprovação na disciplina Literatura Portuguesa/UNIFACS.

Poesia de Camões

Tanto de meu estado me acho incerto,
Que em vivo ardor tremendo estou de frio;
Sem causa, juntamente choro e rio;
O mundo todo abarco e nada aperto.

É tudo quanto sinto um desconcerto;
Da alma um fogo me sai, da vista um rio;
Agora espero, agora desconfio,
Agora desvario, agora acerto.

Estando em terra, chego ao Céu voando;
Numa hora acho mil anos, e é de jeito
Que em mil anos não posso achar uma hora.

Se me pergunta alguém porque assim ando,
Respondo que não sei; porém suspeito
Que só porque vos vi, minha Senhora.

Análise 

O neoplatonismo opõe a perfeição do mundo das idéias, aspirado pelo espírito, e a imperfeição do mundo terreno, que condiciona a vida humana. Incorporando a visão pessimista da vida desta corrente de pensamento, Camões escolhe um amor ideal livre de imperfeições, fazendo a transposição do amor para o plano superior.

Campo Fônico 

O soneto apresentado é regular, portanto composto de duas quadras e dois tercetos. Seu esquema rímico é abba/abba/cde/cde, assim, na primeira e na segunda estrofe temos rimando “incerto” com “aperto”, “desconcerto” e “acerto” e “frio” com “rio” (verbo), “rio” (substantivo) e “desconfio”; na terceira e na quarta estrofe rima-se “voando” com “ando”, “jeito” com “suspeito” e “hora” com “Senhora”. As duas primeiras estrofes formam um campo fônico homogêneo pelas rimas dos versos externos e internos. Já o campo fônico das duas últimas estrofes é formado pela diferente combinação das rimas. Esta diferença sonora acompanha a lógica do silogismo poético.

Silogismo

O silogismo é formado pela apresentação dos argumentos nas duas primeiras estrofes (quartetos) com desenvolvimento e apresentação da conclusão nas duas últimas (tercetos). No último verso geralmente é apresentado uma síntese da conclusão, a “chave de ouro”. No caso do texto acima usam-se como argumentos o seu estado de incerteza (primeira estrofe) e desconcerto (segunda estrofe) para chegar a uma única suspeita (conclusão): ele está assim “... só porque vos vi, minha Senhora”.


Sete anos de pastor Jacó servia
Labão, pai de Raquel serrana bela,
Mas não servia ao pai, servia a ela,
Que a ela só por prêmio pretendia.

Os dias na esperança de um só dia
Passava, contentando-se com vê-la:
Porém o pai usando de cautela,
Em lugar de Raquel lhe deu a Lia.

Vendo o triste pastor que com enganos
Assim lhe era negada a sua pastora,
Como se a não tivera merecida,

Começou a servir outros sete anos,
Dizendo: Mais servira, se não fora
Para tão longo amor tão curta a vida.

Análise

Há claramente uma oposição do desejado (Raquel) e do obtido (Lia). Neste caminho percebe-se que o texto acima segue o mesmo silogismo citado anteriormente. Na primeira estrofe constrói-se o argumento de que Jacó desejava e servia a Raquel, na segunda vemos a ansiedade da espera, na terceira o encaminhamento para a conclusão com a tristeza e a decepção pelo “prêmio de consolação” (Lia) e a “chave de ouro” que fecha afirmando que Jacó servirá, se necessário, mais que sete anos por Raquel “se não fora / Para tão longo amor tão curta a vida”.

Este texto é um soneto que, embora original de Camões, estabelece diálogo com dois outros textos: um bíblico do Gênesis e outro de Francisco Petrarca. A imitação foi estímulo à criação de uma obra pessoal bastante bela.

Esta abordagem também foi utilizada por Renato Russo em “Monte Castelo” onde se nota referência à epístola de Paulo e ao soneto de Camões (“Amor é fogo que arde sem se ver...”).

O uso desta estilística possibilita uma análise intersemiótica que relaciona os textos no processo de construção de significado.

Breve Análise Intersemiótica

O texto bíblico caracteriza as duas moças: “Léia [no poema, provavelmente por razões sonoras, Lia] olhos enfermos, enquanto que Raquel era formosa de porte e de semblante”; Camões aproveitou-se desta descrição e fez análogo chamando Raquel de “serrana bela”. No gênesis também se encontra a promessa inicial de Jacô a Labão: “Sete anos te servirei para ter a Raquel, tua filha mais moça”; os sete anos para Jacó foram “poucos dias, pelo muito que a amava”. É no gênesis que também entendemos a cautela do pai, pois não deseja dar a menor antes da primogênita e romper com o costume da terra.

Last Updated on Monday, 24 May 2010 15:52