Cesário Verde
Written by Adonai Estrela Medrado   
Monday, 24 May 2010 16:25

Sobre

Este material é adaptação de trabalho apresentado em maio/2010 como requisito para aprovação na disciplina Literatura Portuguesa/UNIFACS.

Cesário Verde

Cesário Verde não era camponês em um sentido literal, pois nasceu em Lisboa no ano de 1855. Entretanto, suas crenças a respeito do ambiente rural aproximam-se de visão do homem do campo. Talvez possamos atribuir parte desta característica à sua história, já que sua família ao mesmo tempo em que trabalhava com o comércio na cidade, lidava com atividades agrícolas o que lhe possibilitou conviver de perto com os paradigmas citianos e rurais desde criança.

Cesário Verde não traz em sua poesia uma visão fantasiosa de campo e sim a de espaço real, mais próximo daquilo que ele considerava realidade e mais distante de uma visão utópica e idealizada. No lugar da fantasia, da ingenuidade e da inocência, Cesário Verde fala de um campo mais concreto, que possibilita, dentre outras coisas, uma maior liberdade e uma vida saudável.

Ele “caminhava” entre pintores. Seu círculo de amizades era fértil destes artistas, assim como na sua geração havia o predomínio deles sobre os poetas. Nos poemas de Cesário Verde, as representações pictóricas se dão fundamentalmente com o uso do elemento cor.

De Verão

I
No campo; eu acho nele a musa que me anima:
A claridade, a robustez, a acção.
Esta manhã, saí com minha prima,
Em quem eu noto a mais sincera estima
E a mais completa e séria educação. 
 
II
Criança encantadora! Eu mal esboço o quadro
Da lírica excursão, de intimidade.
Não pinto a velha ermida com seu adro;
Sei só desenho de compasso e esquadro,
Respiro indústria, paz, salubridade. 
 
III
Andam cantando aos bois; vamos cortando as leiras;
E tu dizias: «Fumas? E as fagulhas?
Apaga o teu cachimbo junto às eiras;
Colhe-me uns brincos rubros nas ginjeiras!
Quanto me alegra a calma das debulhas! 
 
IV
E perguntavas sobre os últimos inventos
Agrícolas. Que aldeias tão lavadas!
Bons ares! Boa luz! Bons alimentos!
Olha: Os saloios vivos, corpulentos,
Como nos fazem grandes barretadas! 
 
V
Voltemos! No ribeiro abundam as ramagens
Dos olivais escuros. Onde irás?
Regressam os rebanhos das pastagens;
Ondeiam milhos, nuvens e miragens,
E, silencioso, eu fico para trás. 
 
VI
Numa colina brilha um lugar caiado.
Belo! E, arrimada ao cabo da sombrinha,
Com teu chapéu de palha, desabado,
Tu continuas na azinhaga; ao lado,
Verdeja, vicejante, a nossa vinha. 
 
VII
Nisto, parando, como alguém que se analisa,
Sem desprender do chão teus olhos castos,
Tu começaste, harmónica, indecisa,
A arregaçar a chita, alegre e lisa,
Da tua cauda um poucochinho a rastos. 
 
VIII
Espreitam-te, por cima, as frestas dos celeiros;
O sol abrasa as terras já ceifadas,
E alvejam-te, na sombra dos pinheiros,
Sobre os teus pés decentes, verdadeiros,
As saias curtas, frescas, engomadas.

IX
E, como quem saltasse, extravagantemente,
Um rego de água, sem se enxovalhar,
Tu, a austera, a gentil, a inteligente,
Depois de bem composta, deste à frente
Uma pernada cómica, vulgar! 
 
X
Exótica! E cheguei-me ao pé de ti. Que vejo!
No atalho enxuto, e branco das espigas,
Caídas das carradas no salmejo.
Esguio e a negrejar em um cortejo,
Destaca-se um carreiro de formigas. 
 
XI
Elas, em sociedade, espertas, diligentes.
Na natureza trémula de sede,
Arrastam bichos, uvas e sementes
E atulham, por instinto, previdentes,
Seus antros quase ocultos na parede. 
 
XII
E eu desatei a rir como qualquer macaco!
«Tu não as esmagares contra o solo!»
E ria-me, eu ocioso, inútil, fraco,
Eu de jasmim na casa do casaco
E de óculo deitado a tiracolo!

 XIII
«As ladras da colheita! Eu, se trouxesse agora
Um sublimado corrosivo, uns pós
De solimão, eu, sem maior demora,
Envenená-las-ia! Tu, por ora,
Preferes o romântico ao feroz.
 
XIV
Que compaixão! Julgava até que matarias
Esses insectos importunos! Basta.
Merecem-te espantosas simpatias?
Eu felicito suas senhorias,
Que honraste com um pulo de ginasta!» 
  
XV
E enfim calei-me. Os teus cabelos muito loiros
Luziam, com doçura, honestamente;
De longe o trigo em monte, e os calcadoiros,
Lembravam-me fusões de imensos oiros,
E o mar um prado verde e florescente. 
 
XVI
Vibravam, na campina, as chocas da manada;
Vinham uns carros a gemer no outeiro,
E finalmente, enérgica, zangada,
Tu, inda assim bastante envergonhada,
Volveste-me, apontando o formigueiro: 
 
XVII
«Não me incomode, não, com ditos detestáveis!
Não seja simplesmente um zombador!
Estas mineiras negras, incansáveis,
São mais economistas, mais notáveis,
E mais trabalhadoras que o senhor!»

Análise

No poema, podemos observar tanto na sua descrição do campo, quanto em sua “prima”, representante deste, características sedutoras e belas que trazem o campo como vida, pureza, felicidade, saúde, alegria, liberdade, etc. Neste sentido, dois trechos são bastante expressivos: 1) “Nisto, parando, como alguém que se analisa, / Sem desprender do chão teus olhos castos, / Tu começaste, harmónica, indecisa, / A arregaçar a chita, alegre e lisa, / Da tua cauda um poucochinho a rastos.”; e 2) “Que aldeias tão lavadas! / Bons ares! Boa luz! Bons alimentos!”

Existe certa identidade entre as características do campo e de sua representante neste poema, sua “prima”. Em todo o caso, vê-se que para Cesário campo é musa, claridade, robustez, ação e dá ânimo (“No campo; eu acho nele a musa que me anima: / A claridade, a robustez, a acção”), ao mesmo tempo também possui bons áreas, boa luz e bons alimentos (“[...]Que aldeias tão lavadas! / Bons ares! Boa luz! Bons alimentos!”). Existe uma abundância e uma fertilidade (“No ribeiro abundam as ramagens / Dos olivais escuros”) e uma beleza natural (“Numa colina brilha um lugar caiado. / Belo!”).

O olhar do eu poético sobre as formigas é predominantemente severo. Fala-se até de envenená-las com um sublimado corrosivo. Ao ler este trecho podemos nos lembrar do trabalho operário e associar o “rir como qualquer macaco” à condição de observador ingênuo que não percebe nas formigas sua própria situação de trabalhador. Seguindo esta interpretação, é sugerida uma suposta superioridade da natureza: “Não seja simplesmente um zombador! / Estas mineiras negras, incansáveis, / São mais economistas, mais notáveis, / E mais trabalhadoras que o senhor!”.

Temos como exemplos das representações pictórias de Cesário Verde as seguintes expressões: “uns brincos rubros nas ginjeiras”, “olivais escuros”, “Numa colina brilha um lugar caiado”, “Verdeja, vicejante, a nossa vinha”, “branco das espigas”, “cabelos muito loiros”, “o mar um prado verde e florescente” e “mineiras negras”.
 

Last Updated on Monday, 24 May 2010 16:42